segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Cortejo à amante

Pontualmente, às 20h, ele entra em minha casa e deixa o passar da rua pelo portão. Senta-se no sofá e vê da janela um céu emoldurado por tropo do tempo que nunca morre. Pergunta-me se sempre haverá estrelas. E eu, crente, digo que mesmo lá, haverá.  Observa a casa em ordem de rotina, o tapete que recebe os pés com prazer e o silêncio das cumplicidades que nada dizem em palavras. Olha as paredes em cores. Gestualmente, ama-me imóvel, afável somente por ser e ali estar.

O sol crepitante, a chuva fina, o vento morno , a trovoada firme, a primavera leve, os pequenos raios - de luz ou luz.

Pontualmente, às 22h ou 22h10, ele passa em frente à rua de minha casa e para em frente à porta. Fica ali de pé, olhando as janelas carcomidas pelo tempo. Curto tempo. Observa o portão, com seus canos retorcidos ornadamente. Verifica o contorno da casa, o desvanecer das cores das paredes;  o capim que cresce em desordem, imperioso. Ele não vê caminho para a entrada - mas procura. 

Então, percebe que são horas, e que se ela souber que ele ainda ali está, diariamente, desmoronará todo o imperioso castelo de areia. Ela é feita de água e pó. Onde ela mora, não há estrelas. Mas o céu, ah, o céu! é sempre de um azul cintilante, como o da parede branca. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sobre como me tornei máquina - II

Sentada
à beira do abismo

desprendo do peito a dor
que me faz existir.
Lentamente me deixo ir
até tocar
- com pés firmes -
o chão.

Então, volto para casa.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Sob tuas alturas


Eleva-me sofregamente
quando percorre meus declives
- vales férteis de lânguidos caminhos -
com suas mãos deslizantes.

Eleva-me tempestivamente
- à paisagem, surgem alterosas -
perfazendo minhas entranhas
a expor feixes de luz outrora ocultos.

Eleva-me, enfim, num sobressalto.
Inunda-me, em riste,
em  teu rio 
leitoso, morno, acolhedor.

Resfolegante
suavizas, assim
os gritos de minh´alma.



domingo, 2 de junho de 2013

Distonia do amanhã

tenho pressa. a vida termina amanhã. já não há saudade, ausência ou presença. a vida termina amanhã. assim, como começou...porque começou? porque ela termina amanhã? só sei que hoje é tarde; sempre é tarde para a vida terminar amanhã. 

são madrugadas, mas não as do dia em que o amanhã finda a vida; ou a vida finda a manhã? só sei que o céu vermelho, é o abismo contrário do que abismo é. já não sinto saudades. nem de sentir saudades. é o fim da razão, onde ela nunca existiu. 

(se acreditasse em outras vidas, meu amor, mataria a crença, só para descansar em paz. para sempre, sem ser)

às seis o galo cantou.
o sino tocou.
Ecoou.
Ecoou.
Ecoou: o incômodo das horas... às seis da manhã.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Outras horas

Passas por mim
a rastrejar-me os desejos.
Ansiando a descoberta de minhas rendas
negras como a noite
com cálidas mãos que me tateiam 
sorrateiras e tempestivas.

Há tempo.

Adentra-me vasculhando quartos
meios, inteiros.
Velando-me em vigilante nudez
-corpo e sonho -
enquanto desfaleço 
em teus linhos. 

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Amor, sentido e arte

“Nos anos 70, Marina Abramovic viveu uma intensa história de amor com Ulay. Durante 5 anos viveram num furgão realizando todo tipo de performances. Quando sentiram que a relação já não valia aos dois, decidiram percorrer a Grande Muralha da China; cada um começou a caminhar de uma lado, para se encontrarem no meio, dar um último grande abraço um no outro, e nunca mais se ver. 

Vinte e três anos depois, em 2010, quando Marina já era uma artista consagrada, o MoMa de Nova Iorque dedicou uma retrospectiva a sua obra. Nessa retrospectiva, Marina compartilhava um minuto de silêncio com cada estranho que sentasse a sua frente. Ullay chegou sem que ela soubesse. E foi assim.”

Acessado em 10 de abril de 2013



Percebe?

domingo, 24 de março de 2013

Quando, se.


Se tivesse partido
Como os homens comuns que ao seu tempo
caminham
Não sentiria tua ausência como sinto
quando você está.

Se você tivesse partido

Como os homens comuns que  ao seu tempo
caminham
Não sentiria que está 
quando de tua ausência.

Se você estivesse

E tivesse partido
Eu sentiria
Preenchido esse vazio.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

As linhas da palma de minha mão

Amo-te como parte de mim
Fragmentada
De lá, mas parte.
Como sem outra forma
Nem outro ser; parte.
Completa, sempre aqui
- sem outro jeito, pois o jeito
É.
Faz o ser
Que sou.

Todo ser seu
Parte de mim.

domingo, 27 de janeiro de 2013

O nome - Final

Fluência. Eu não tenho fluência, eu tenho passeios. Pelas palavras percorro brincar de plenitude. Agora passeio pela rua. Pela rua porque é apenas uma rua. Pela rua sinuosa, insinuante, reta, ereta, dura. Agora sim, pode sorrir. Tenho saudades de muralhas e de esquecer nomes. Por que eles me vêem, eu perco a leveza. E viro rua. O perigo de se virar rua. Você já foi rua?

Eu não quero me escrever mais. Já disse muito. Não haverá mais cenário. Nem nome e eu não sei se serei. Não direi mais nada. Serei silêncio. Não queria dizer eu. Eu queria morrer do jeito que você entende morrer. Porque eu sei que as pessoas morrem também, mas ninguém morre como se deve morrer. Só como não deve que as pessoas morrem. Eu não queria que as pessoas morressem como elas sabem morrer. Queria de outro jeito. Mas não há.

Porque eu gosto das coisas simples da vida. De comprar flores. Quem compra flores, você compra? Eu compro flores para enfeitar minha sala. Andando em outras ruas que não estas – existem sim outras ruas, mas quase nunca as percorro – colho flores para mesclar a vida e a morte, pois as coloco na sala. Eu recolho flores porque é simples e me dá alegria. Eu quase não planto alegria, e colho flores. Não colho alegrias porque não planto flores. Só as recolho e levo comigo.

Ir. Está na hora de ir, mas estou tão cansada que minha mente não coordena meus pés que vão indo pra onde for que houver. Mas não há. Pra onde sigo, então? Impulsiva, não desejosa. Perdi o sabor de prosseguir. Luto contra o mundo, mas não adianta. Sou tão fraca, tola, cíclica que me perco sempre. Sempre. Na mesma rua em que ando reta.  Pelos mesmos caminhos em que há anos sigo por seguir. Caminhando de coração laçado com o fantasma.

domingo, 13 de janeiro de 2013

O nome - Parte 8 (cont.)

Então quando eu era pequena, brincava de viver. E não haviam segredos. Aliás, haviam segredos, mas eram segredos bons, que davam sabor à vida. E isto me fazia viver. Você vivia quando era criança? Eu já fui criança. Assim, criança diferente, porque cada criança é diferente da ideia de ser criança que o adulto tem de quem criança é.

Muralhas dormem em paz, suspirando sonhos de criança que é, e vê a verdade e finge que vive. Eu não durmo. O dia se aproxima, mas já é dia, só que ainda está escuro. Eu gosto do escuro. E eu não queria gostar mais de anjo, mas eu não sou dona de mim. Eu sou sem querer, mesmo estando morta. Porque a ideia está morta. Você morreu?

Estou cansada. A cama me preenche... não!, eu preencho a cama. Eu, eu. Eu sou eu. Está feliz? Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou. Sou eu. Eu. Que vontade de ser feliz agora. Porque você descobriu que eu sei que sou eu. Eu sempre soube, mesmo quando eu não era eu. Eu nunca fui a ideia de criança que você pensa que criança é, por isso eu sempre fui. Tenho pena de ser. Eu não queria mais.

Você sabe como marcar a vida? Vou desvencilhar as mãos para sair daqui. Muralha de anjo: beleza leve, que sonha vento de encanto fugaz.

Estou cansada, vejo os raios do sol. Amanheço. Eu amanheço, e a beleza das metáforas segreda tantas confidências. Você está preparado para saber o maior de toda a vida? Vou te contar, mas somente quando você for. Ninguém mais dorme neste apartamento. Agora não posso continuar...
 
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